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Artesãs do barro e da vida

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*Por Márcia Almeida Jardim

No Vale do Jequitinhonha, região com bons barreiros, o artesanato do barro é uma tradição geracional, passada de mãe para filha, com o objetivo de melhorar a renda de uma região que já foi considerada a de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil. Nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, a pobreza extrema e a falta de empregos, levou a maioria dos homens a migrarem para Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Muitos nunca mais voltaram, mandaram dinheiro ou deram notícias, o que levou as artesãs a ficarem conhecidas como as “viúvas do barro”.

Mas as artesãs do barro não se vergaram. No final dos anos oitenta, interessados nesse tipo de artesanato, vindos de São Paulo e Rio de Janeiro, começaram a comprar mais peças e dar visibilidade ao trabalho. Por sua vez, as artesãs perceberam que precisavam se organizar para terem mais força, iniciativas e capacidade de vendas e então fundaram, em 1994, a AACC (Associação dos Artesãos de Coqueiro Campo). Atualmente, unem-se a outras associações e viajam para feiras de artesanato Brasil afora.

Márcia, sentada à esquerda, e Rita atrás, em pé, juntamente com as professoras artesãs – Foto: Evaldo Jardim

Há pouco mais de um ano, ouvi os relatos apaixonados de minha cunhada sobre sua experiência ao conhecer o trabalho e a vida das artesãs do barro do Vale do Jequitinhonha, convivendo em seus lares e interagindo com seus familiares, por meio do Projeto Turismo Solidário, uma iniciativa do Governo de Minas Gerais em parceria com o Sebrae. Naquele momento decidi que também teria essa vivência e comecei então a me informar e a planejar a viagem.

Finalmente nosso dia chegou! Em dezembro de 2018, logo depois do Natal, o sonho pegava estrada a caminho de se tornar realidade. Estávamos em três nesta aventura, Evaldo, meu companheiro de vida, nossa filha Rita, de 21 anos, e eu. Partimos de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, para a comunidade de Campo Buriti, município de Turmalina, Minas Gerais, distante mil quilômetros.

As alunas Rita e Márcia retiram as cerâmicas do forno, sob a supervisão das artesãs – Foto: Evaldo Jardim

Chegamos depois do almoço, moídos pelas condições precárias das estradas, mas com uma enorme expectativa, daquelas de acelerar o coração e secar a boca. Como seria o primeiro olhar? Abraço ou aperto de mão? Encontramos a experiência da nossa anfitriã Terezinha Lopes dos Santos, ex-presidente da AACC e atual integrante do Conselho fiscal, e o acolhimento típico dos mineiros, a boa conversa, ao redor da mesa posta com café, queijo, biscoito de polvilho, pão de queijo, bolo e outros quitutes. Naturalmente, ficamos todos à vontade. Terezinha e sua irmã, Tata, quiseram logo colocar as mãos à obra, afinal, tínhamos apenas dois dias e meio.

São dois tipos de oficinas, uma de modelagem e outra de pintura e nos inscrevemos nas duas. Era tudo simples e leve, elas iam fazendo e explicando e, claro, dando uma ajuda, sempre com muita paciência. Éramos todas mulheres, mães, filhas, avós e netas, ao redor de uma mesa, na garagem da casa. Naquela altura, ao lado daquelas mulheres, apesar das minhas mãos urbanas, amassando e modelando o barro, fui tomada por um sentimento de pertencimento e identidade como nunca tinha sentido. E esse foi só o começo.

Para minha surpresa, meu primeiro aprendizado foi ouvir das artesãs que a transformação do barro em cerâmica era um processo relativamente longo e minucioso, com várias etapas: modelar, secar, retocar, olear, pintar e queimar. No entanto, o andamento deste processo não dependeria da nossa vontade, mas sim a natureza seria quem determinaria o tempo que a peça demoraria para secar. Foi quando senti minha primeira dificuldade, já que sou muito ansiosa. Como assim, eu teria que simplesmente esperar, sem fazer nada? Exatamente!

Peças modeladas em processo de secagem – Foto: Evaldo Jardim

Depois de secar, vem a fase de acabamento para pequenos retoques. Segundo as artesãs, é de bom tom que algumas irregularidades permaneçam, é natural e isso não desvaloriza o trabalho porque é manual. Nenhuma peça, nem do mesmo artesão, fica igual à outra.  Segundo momento de dificuldade, afinal, sou perfeccionista.

O objeto estava pronto para receber o oleio, produzido a partir do barro, que é usado para dar o fundo na peça, preparando-a para receber a pintura. Novamente, a peça precisava secar para ser pintada, mas isso seria trabalho para o dia seguinte. Logo percebemos que a oficina de pintura envolvia outras técnicas e dons. Observei que as artesãs se realizavam ao transmitirem seu conhecimento. Rita, minha filha, saiu-se tão bem, quem sabe por ser bisneta de uma artesã de argila, que chegou a surpreender nossas professoras.

Peças oleadas e pintadas – Foto: Evaldo Jardim

Chegamos à etapa final, a transformação pelo fogo. No caso da queima de peças de barro, feitas em fornos de barro em altíssimas temperaturas, o objetivo é tornar o barro resistente e revelar as cores finais das peças, que ficam diferentes das cores usadas na pintura. Mais uma vez, precisamos aprender que o resultado final não depende do nosso trabalho e sim da vontade e da força do fogo. Abrir o forno, doze horas depois, foi o momento de maior expectativa, em que se vive a realização pelas peças que ficaram boas e as dores pelas peças quebradas ou queimadas, “assim como na vida”, disse a artesã Tata. Em estado de euforia, Rita e eu trouxemos várias peças para casa.

Foram três dias de tanto impacto e transformação na minha vida que mais pareceram meses de terapia. Aprendi a ter mais paciência com os outros, com as coisas da vida e comigo mesma. Procuro aceitar mais as minhas limitações e que não tenho controle sobre a minha vida, por mais que eu queira. Quando sinto as dificuldades querendo voltar, pego uma das minhas peças nas mãos e fico a contemplar, longamente, com carinho e compaixão. Ajuda muito.

Peças prontas – Foto: Evaldo Jardim

Agradeço às artesãs Terezinha e Tata que, assim como as outras, são mulheres fortes e sábias, que sobrevivem no sertão mineiro e às intempéries da vida, mantendo a tradição de gerações de mulheres, por meio do trabalho de suas mãos e unidas em associações.

Recentemente, em dezenove de dezembro de 2018, o Conselho Estadual do Patrimônio (CONEP), do Estado de Minas Gerais, declarou o artesanato em barro do Vale do Jequitinhonha patrimônio imaterial, levando em conta seus saberes, ofício e expressões artísticas.

*Márcia Almeida Jardim é socióloga e doutora em ciências sociais

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